terça-feira, 9 de abril de 2013

"... o compromisso de transformarem a vida duma criança, sempre que lhes for possível, num fim de semana."

"O Dia Seguinte" é o texto mais fantástico que já li sobre separação, sobre pais e sobre filhos.

Começa assim: "Diante da separação há quem fique melhor e mais bonito e quem azede e se consuma em rancor." 
Eduardo Sá continua depois:

"1 - Não vale a pena termos ilusões: aquilo que não esclarecemos e não resolvemos com os nossos pais, não será uma relação amorosa, por si só, que irá sossegar. Mesmo que muitas pessoas construam uma nova família como se, com ela, pusessem o “conta-quilómetros” do seu coração mais ou menos a zero. Em primeiro ligar, ninguém constrói uma família. É, muito mais, ela quem nos constrói. Em segundo lugar, se uma família é constituída por todas as pessoas que têm um lugar dentro de nós, todas as famílias são numerosas (ou, mesmo, uma multidão), se bem que o respetivo “organograma” não corresponda, muitas vezes, à dinâmica informal de importância que cada pessoa merece. Em terceiro lugar, ninguém começa uma família do princípio (e, sendo assim, essa ideia de “constituir uma família”, não é, sequer, sensata, porque presume que uma família se inicia - ou se consuma - quando temos filhos quando, na verdade, ela se concretiza quando somos filhos). Somos, desde sempre e para sempre, filhos e, por inerência, somos, para sempre, a nossa família. Ora, quando duas pessoas se ligam, são duas famílias que se casam, por mais que aquilo que vincule cada uma à sua família não sejam, sobretudo, aspetos esclarecidos ou resolvidos mas, muitas vezes, dores por cicatrizar. Mais do que possa parecer. Daí que eu compreenda que, duma forma mais ou menos banal, se aceite que, primeiro, surge o namoro e, só depois, o casamento. Mas, tomando esta ligação entre dois conjuntos tão complexos, como são duas famílias, talvez a sequência correta se passe assim: quando as pessoas namoram vão-se casando, devagarinho; e quando se casam, namoram melhor (desta vez, na companhia das suas famílias). E é aqui que, por falta deste namoro entre duas famílias (que, raramente, cresce e se aprofunda), uma separação se vai desenhando devagarinho. Às vezes - reconheço - parece-me que o mundo anda virado de pernas para o ar. Para as pessoas, o namoro acaba quando se inicia o casamento. E caracteriza-se por birras, discussões e amuos... Mas, para mim, o namoro começa quando as pessoas se casam. E não pode nem deve dar lugar a almas gémeas nem a um clima do género... Dupond e Dupont. Precisa de conflitos insubstituíveis. Vale pelo ênfase, claro, mas... um casal que não se irrita (pelo menos, uma vez por semana...) não é um casal; é uma sonolência militante... E é com ela, diante de tudo o que, sendo nosso, não casa com o outro, que se constrói um comboio de pequenos-nada, embrulhados em silêncio, com que se tece qualquer separação. É por isso que, inevitavelmente, todos os divórcios se dão por mútuo consentimento. E, por isso mesmo, não deixam de ser... litigiosos. Se bem que, bem vistas as coisas, o litígio devesse ser, pelo menos, tão dirigido ao outro como a nós próprios... E aos nossos pais... E à nossa família... Por mais que isso, raramente, seja assumido.

2 - Neste contexto em que duas pessoas tentaram, com inequívoca generosidade, começar uma família mais ou menos do zero (e, à medida que o tempo passa, foram confrontadas com faturas que caiem de surpresa, para um e para outro) gerir a vida dos filhos não é fácil. Porque tudo se mistura: tudo o que nunca se esclareceu nem se resolveu com os nossos pais; tudo o que nunca se esclareceu nem se resolveu com a pessoa com quem se foi vivendo; tudo o que nunca se esclareceu nem se resolveu, dentro de nós, em relação aos nossos pais, aos nossos filhos e à pessoa com quem se foi vivendo. Ou seja: todas as separações exigem ressentimentos e remorsos. Se eles ficam em banho-maria, e debitamos a culpa ao outro, eles transformam-se em rancores. Se os repartimos com quem nos foi magoando (e basta que isso se faça na intimidade do nosso diálogo interior) ganhamos clarividência e sabedoria e, seguramente, teremos chegado a um planalto onde, finalmente, partindo desse balanço de vida, se dá o salto para nos virarmos do avesso e crescermos, em relação a tudo o que fomos deixando de esclarecer e de resolver, como, até aí, nunca o teremos feito. Isto é: diante duma interpelação tão aguda como uma separação, há quem fique melhor e mais bonito, e quem azede e se consuma em rancor. Aqueles que ficam melhores e mais bonitos tornam-se bons pais. Os outros, vão deixando de o ser. No limite, uma fórmula do género: “Se dependesse de mim, faria de outro modo...” será sempre batota. Porque, como em todas as outras áreas da nossa vida, também diante duma separação, crescer é escolher. Reconheço, portanto, que há muitas separações que funcionam como uma espécie de “entidade reguladora da parentalidade”, para muitas mães e para muitos pais, porque os ajudam a serem os pais que, por mais que quisessem ter sido, nunca terão conseguido alcançar.

3 - Diante de tudo isto, quando se trata de dividir os filhos pelos gestos de parentalidade dos pais, o grande obstáculo não será nunca judicial. Tem, sobretudo, a ver com a honestidade dos pais diante de todos os sobressaltos interiores que, até à separação, geriram, sem querer, numa fuga para a frente. Por tudo isto, tenho esperança que o verão possa representar um momento de reconciliação de muitos pais. Sobretudo, consigo mesmos. Para que, depois, tudo se torne mais simples quando se trata de repartir os tempos dos fi lhos com quem, podendo não ser hoje a escolha em que se revejam, terá sido uma pessoa escolhida por si. Incipiente, ingénua, impulsiva, deprimida ou, irresponsável, dir-me-ão. Provavelmente... Mas, todavia, uma escolha sua. Assim compreendam que se errar é humano e insistir num erro se torna diabólico, não reconhecer um erro, nem as omissões com que ele se teceu, compromete, de forma mais ou menos catastrófica, o futuro. O seu e o dos próprios fi lhos. Daí que “refazer-se a vida” seja uma fórmula hábil, muito do agrado das pessoas que receiam transformar-se, que as leva a ir por diante, começando novas relações ilusoriamente do zero, sem nunca saírem de tudo aquilo que nunca esclareceram nem resolveram e que, por isso mesmo, lhes foi encurralando o coração.

4 - Repito-me: tenho esperança que, neste verão, os pais, por mais que sejam os ressentimentos e os remorsos que os fraturam, entendam que uma mãe e um pai são direitos fundamentais de todas as crianças. E que os pais que não são capazes de se dividir, de forma paritária, por tudo aquilo que entendem ser prioritário para si, talvez não estejam à altura do compromisso que, tacitamente, assumiram com os filhos: o compromisso de estarem vivos, por dentro, para sempre; o compromisso de, se bem que vacilem sempre que a vida os sobressalta, serem justos e sensatos, ousados e serenos; o compromisso de serem humildes e corajosos; o compromisso de nunca fugirem da tristeza e, por isso mesmo, o de jamais desistirem de ser felizes; e o compromisso de - por mais que seja diante dos problemas que todos os aprendemos a resolver - transformarem a vida duma criança, sempre que lhes for possível, num fi m de semana. E as férias grandes numa oportunidade de reconciliação com o passado sem a qual, seja qual for o futuro que se escolha, o dia seguinte chega, para sempre, tarde demais."

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